Para quem não sabe, esta série do
Netflix inspirada em uma história real se desenvolve ao redor da história de uma
mulher em seus 30 e poucos anos (ou menos!) da classe média alta nova-iorquina condenada
a cumprir 15 meses numa prisão feminina federal por ter participado do
transporte de uma mala de dinheiro proveniente do tráfico de drogas a pedido da
sua ex-namorada.
Mais interessante até do que a
transformação de Piper neste atípico ambiente e do que o desenrolar da doentia
relação amorosa com sua ex-namorada que constantemente a está colocando em maus
lençóis, foi a análise e reflexão sobre cada uma das personagens secundárias e
de como essas histórias estão aí todos os dias ao nosso lado sem que sequer nos
demos conta.
Devo dizer que a série é muito
bem escrita e as atuações no geral me agradaram bastante, mas assistir a essas
2 temporadas me deixou com o estomago embrulhado o feriado inteiro! Pensar em
como o sistema é podre, em como meninas entram em uma prisão com mínimo
potencial ofensivo e saem (se é que saem pois quase sempre voltam) como
perigosas criminosas frias e calculistas e totalmente descrentes quanto à
capacidade do Estado de protege-las ainda que minimamente é um soco na cara. Por outro lado, relembrar
que, o que a primeira vista parece ser apenas uma criminosa é uma mulher com
uma história, com dores, com traumas e, quase sempre, com algum lado bom e
capaz de ao menos algum tipo de gesto solidário e humano me deu um certo desanimo geral quanto ao que eu realmente posso fazer para melhorar esse mundo tão fucked up!
Claro que estamos falando de uma
prisão de segurança mínima nos Estados Unidos, certamente muito romantizada para
prender o interesse do espectador. Fico imaginando como será a realidade...
ainda mais no Brasil! Paro de imaginar, do contrário acho que não conseguiria
sequer seguir com minhas atividades diárias. É tudo muito triste!
Por exemplo, uma das cenas que mais me tocou
foi a da feira de adoção em que a menininha negra tenta se destacar para ser
adotada e acaba mais uma vez frustrada e por fim cooptada por uma traficante
que acaba preenchendo uma lacuna materna de forma bastante
doentia... Pensei na quantidade de crianças
nessa situação no nosso país. Não pude deixar de pensar nas fotos de barriga “de book” de grávidas contra o aborto do alto de suas vidas
confortáveis com seus filhos e filhas lindos e bem cuidados enquanto essas
crianças “se esforçam” para serem amadas um pouquinho que seja!
O processo todo de Piper e de
outras personagens na prisão mostrou mais uma vez o que já tinha lido em livros
(como o em “Em Busca de Sentido” do psiquiatra Viktor E. Frankl) isto é: como o ser humano vai se tornando insensível ao sofrimento alheio
(e ao próprio também) em situações extremas prolongadas! Nos tornamos
insensíveis para sobreviver! É isso que fazem as prisioneiras, é isso que fazem
os agentes de carceragem sobreviverem e é isso que fazemos nós da classe média! Como sobreviver em um mundo como
este de outra forma? Como levantar da cama e ir trabalhar em nossas atividades
corriqueiras tão sem sentido perto de tantas coisas horríveis que estão
acontecendo no mundo todo? Seres humanos sendo queimados pelo Estado Islâmico,
meninas e mulheres sendo estupradas e assassinadas diariamente no mundo todo,
fome, guerras, desespero... como seguir em frente a cada dia a não ser criando
uma película de insensibilidade?
E aí, no meio de tudo isso e de
todos esses sentimentos, ontem veio a minha menstruação! Primeiro dia do 14º ciclo de tentativas... Literalmente um dia de sangue e
lágrimas! Começo a pensar em como não aguento mais dividir meu mês em 2 e a
segunda parte não passar nunca... Ficar olhando cem vezes por dia para o
aplicativo que controla minha fertilidade daquele mês, pensar TODO santo ciclo
na DPP e nas vantagens de cada signo... Não aguento mais a tristeza a cada
1DC... E como se já não fosse dolorido o suficiente ainda tem que ser com
cólica, com dor e uma enxurrada de sangue para não deixar dúvidas de que NÃO CONSEGUI MAIS UMA VEZ!!!!
E então, assistindo ao 8º episódio da
segunda temporada no qual a protagonista consegue uma licença para visitar sua
avó moribunda e é odiada pelas demais detentas por tal privilégio (já que de
fato outras não haviam conseguido esse indulto nem para morte de pai e mãe, dentre outras situações!)
dois sentimentos aparentemente contrastantes me invadiram.
O primeiro foi o quanto os
privilégios nos beneficiam quer nós queiramos ou não! A Piper não fez nada de especial (a
não ser se branca e rica) para conseguir a licença que todas as outras não
conseguiram e, de fato, se sentia mal por ter sido privilegiada neste sentido,
sentimento este que em nada muda o sofrimento genuíno pela iminente morte de
sua amada avó. Aparentemente, como disse a Poussey:
“avó branca doente ganha de mãe negra morta!” e, é claro, a protagonista é
acusada de ter tido uma vida “fácil” e ter sempre um tapete vermelho estendido
a seu dispor. Mas olhando um pouco mais profundamente perceberíamos, por
exemplo, que a avó de Piper supria uma figura materna bizarra que era sua mãe,
que sim, lhe deu conforto e a mimou, mas também contribuiu grandemente para as
frequentes decisões zuadas e as falhas de caráter evidentes presentes na personagem!
E, então, o segundo sentimento, de novo, como já
escrevi aqui também que é o como “julgar o sofrimento alheio é algo tão equivocado quanto injusto
pois a dor não tem medida e muito menos escala! ”. Há sempre alguém
sofrendo um sofrimento “mais legítimo” do que o nosso! Taystee (a menina que se
esforçava para ser adotada e acabou passando a vida entregue ao sistema, seja
em orfanatos, febens e prisões) em algum momento jogaria na cara de Poussey que
“ela não tinha pai militar para ajudá-la e ampará-la”. E se fossemos continuar com
este “exercício” poderíamos ir ao infinito e além pois está mais do que provado
que a maldade e a perversidade humana não conhecem limites...
Qual o caminho então?
Como não banalizar o sofrimento alheio e ao mesmo tempo não afundarmo-nos em
desespero ao pensar em todas as pessoas que sofrem ao nosso redor? Como posso
viver sem culpa meu sofrimento pelo filho que não vem e ajudar o mundo a ser um
lugar melhor?
Não é possível
continuarmos a viver com essa capa de insensibilidade que nos faz olhar para o
lado cada vez que uma criança nos pede dinheiro na rua, que nos faz cegamente
acreditar que compartilhar um post de revolta contra políticos no Facebook é
realmente “fazer a nossa parte” e que uma foto da sua linda barriga resolve o
problema de milhares de mulheres e crianças miseráveis em todos os sentidos
possíveis! Também não é compartilhando indiscriminadamente desgraça após
desgraça ou vídeos escatológicos com crianças e animais sofrendo que estaremos
fazendo do mundo um lugar melhor!
Não tenho uma
resposta pronta... estou em busca dela mas, após um feriado chuvoso, no
aconchego da minha família, regado a pizza e vinho, posso dizer que a gratidão pelo
que temos em oposição à amargura e à auto complacência, combinada à empatia e compaixão em relação ao problema do outro me parece
um caminho viável e mais amoroso!
Conceito nada inovador,
eu sei, mas ainda assim tão em falta...
Um velho monge
budista nos explica: “O sofrimento empático vem antes da compaixão. O poder da
compaixão está além do sofrimento pessoal e está focado em soluções, no que
pode ser feito”. O velho iogue explicou aos neurocientistas que quando a
compaixão surge, o sofrimento é transcendido e a atenção se volta a como ser
útil. O sofrimento é o combustível da compaixão, não o seu resultado. (Trecho
extraído do livro “Budismo com atitude“, por Alan Wallace.)
Também na Bíblia
encontramos em Tiago 2:15-17: “Se o irmão ou a irmã estiverem nus, e
tiveram falta de mantimento cotidiano, 16 e algum de vós lhes disser:
Ide em paz; aquentai-vos e fartai-vos, mas não lhes derdes as coisas
necessárias para o corpo, que proveito há nisso? Assim também a fé, se não
tiver obras, é morta em si mesma.”
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