terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sobre Anas e Marias - "Outras Palavras" - Andressa Barichello

Ela era frágil. Não como um bibelô, mas como tudo que é efêmero. Era ela delicada, a despeito do chão batido que a cercava. A sua história inaugural era a do feto que, ninguém entendia como, tinha vingado naquele útero que não sabia gestar. Era o que diziam e deixa para lá a violência em que essa afirmativa possa implicar.

Mulher, talvez hoje ela acredite que aquele útero não podia gestar. Não é que não soubesse, apenas não podia. Nascer, ainda que prematura, foi a sua primeira transgressão. E a dona do útero que não sabia ou não podia gestar, jamais saberemos, gozou. Porque de repente viu que sabia e podia; transgredir era o desejo de ambas.

Mas quem nasce assim, de um lugar tão interdito e de um querer alheio que foi e que vai além sexo, carrega umbilicalmente um certo peso existencial. Constrange-se, talvez, diante de todos os filhos que desceram antes da hora. Apavora-se por ter-se criado num espaço de perda e de ausência. Será, então, que devia mesmo ter nascido?

A sensação longínqua do não-estar foi transformando-se ao longo da vida em mal-estar. Flertava com a quase morte desde a barriga. Álcool, picadas, cigarro e pó. Tudo para se certificar agora de que era forte o corpo que disseram vir ao mundo com menos de um quilo. Tinha medo de ser, porque era, a criança que ao nascer não podia, ainda, abrir os olhos.

Felizmente, o corpo sempre se mostrava igual ao dos outros, aqueles paridos pontualmente. Parecia até mais forte, por vezes, o que a tornava diariamente uma mulher contra qualquer estatística. Seriam todos os corpos iguais? Era preciso marcar alguma qualquer diferença. Seguiu, portanto, nos testes da angústia. Uma vida que transcorresse em gestação regular não a interessava. Por isso escrevia. Poucas vezes chorava. Não tinha medo de saltar de para quedas. Reagiu a três assaltos. Era esquiva ao toque. Prematura, era sempre.

Adulta, não se rendia nem mesmo aos afagos da mãe - por mera birra, talvez, recusasse agora os afetos recusados pela incubadora; pura injustiça. Pra que tanta gana em vir ao mundo... Então era só isso? Perdeu o emprego, investiu num curta sem sucesso e fumou o que restou da poupança deixada pelo pai sem que ninguém a detivesse; detê-la mesmo, só o útero ou a morte. Vence o útero. E apesar de ser cabeça dura, de moleira bem fechada, seguia com os batimentos cardíacos devidamente monitorados - não por aquela enfermeira da maternidade, mas pela imposição ao controle de frequência que aquela lhe estampou na memória da pele: Todas as vezes em que o peito disparou, não teve jeito, doeu. Sabia que qualquer disritmia poderia ser sinônimo de agulhadas; desde bebê é que tentam padronizá-la, logo ela, que veio para romper com o padrão abortivo! Não!

Já havia cansado, já havia quase desistido... Mas resistiu. De resistência, entendia bem. Resistia à vida, à morte e aos outros. Só não pôde mesmo resistir a si mesma pois a vida nos coloca sempre diante do nosso espelho: foi no dia em que conheceu a namorada, uns anos mais jovem. No corpo, aquele mulherão em proporções de menina. Os olhos grandes, os traços sutis, era também frágil como um passarinho ou qualquer coisa bela que saiba, leve, voar. Se reconheceu ali, sem precisar nenhuma palavra. Sem precisar nada. Elas eram como a vida. Quem visse as duas juntas, não sabia nunca definir o que na composição dava tão certo. Tudo ficava sempre pelo mais óbvio; a lembrança de serem ambas iguais no sexo. Era esse, afinal, um mero, útil e suficiente disfarce, para que não entendessem e não doessem nunca a razão pela qual eram tão e mais profundamente iguais.

Andressa Barichello, paulistana de nascença, curitibana pelo acaso. Escreve crônicas, contos e poemas. Escreve pra tentar fazer sentido, para si e para os outros. É co-idealizadora do projeto Fotoverbe-se! e.... e.... e...

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