terça-feira, 31 de março de 2015

A brincadeira do [in]vestir - "Outras Palavras"

É preciso experimentar e testar o próprio gosto (e corpo) para ousar descobrir-se.

Encontrei em São Paulo, por acaso, uma loja de roupas femininas que tem um funcionamento um pouco diferente. A loja não tem provador, embora seja possível experimentar as peças que custam, todas o preco único de R$30. O que se vê na segunda sala da casa - bem longe dos olhos da rua - são várias mulheres (das mais variadas idades e com os mais diferentes tipos de corpos) experimentando os achados enquanto disputam um espaço em frente ao espelho. Nenhuma peça de roupa é igual a outra e a maioria delas está disposta segundo o velho esquema do cestão.

Ao encontrar três itens do meu interesse, de início fiquei meio sem jeito para prová-los: esperava que o ambiente ficasse vazio e tentava lembrar qual era mesmo a calcinha e sutiã que estava usando. Contudo, não demorei para perceber que não haveria chance para privacidade e, afinal, todas ali estavam na mesma situação: quem imaginava ser vista em trajes íntimos ou numa espécie de topless em pleno início de tarde de quinta-feira? Ninguém de renda preta: calçolas tendência, fique tranquila! 


Tive, portanto, a oportunidade de me descobrir - digo, de tirar a minha roupa e, ao mesmo tempo, me perceber como alvo de olhares. Libertador!
De repente, um cantinho no urbano onde revelar a intimidade parecia passar livre de julgamentos e padrões. Cada corpo e cada mulher com suas marcas. Músculos, estrias, celulites, pelos, cicatrizes, espinhas, silicones, flacidez, tonificação, tatuagens, piercings...
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A loja não tem vendedoras - é gerenciada tão somente pela proprietária sorridente que fica no caixa. A presença de qualquer vendedora, a propósito, parece desnecessária naquele lugar. Isso porque não há dúvidas quanto aos preços e, em razão da própria ausência de provadores e da quantidade limitada de peças e numerações, o exercício a ser feito pelas clientes é quase que a brincadeira coletiva de encontrar os pares: qual roupa para qual corpo. Talvez para minimizar o constrangedor silêncio descoberto pela ausência de cortinas, todas acabam por palpitar sobre o caimento dos vestidos, calças e blusas escolhidos pelas mulheres ao seu redor. Ouvi frases como:


- Achei esse aqui tão lindo, pena que não serviu em mim. Não quer experimentar? Acho que ficaria lindo em você!
- Olha aqui, essa calça não está dividindo a minha bunda ao meio? - Um pouco, mas a bunda ficou bonita, isso que importa.
- Você tem peitão, achei que essa alcinha mixa não sustentou o seu potencial.
- Não leva essa aí não que te deixou apagadinha, gostei mais da outra.
- Essa eu já experimentei, parece um pijama. Mas é questão de estilo né... 

- Eu gosto de roupa justa. Meu número seria o 44 mas eu sempre levo a 42. Minha irmã é ao contrário, ela prefere sempre um a mais...

- Prova essa, prova. Eu e minha cunhada levamos na semana passada. Olhando assim você não dá nada mas no corpo é uma maravilha.
- Com esse frio que está fazendo quem é que tem coragem de depilar as pernas né?


De um certo modo, foi possível que realizássemos ali, despretensiosamente, importantes exercícios: Exercitar o olhar para o próprio corpo e percebê-lo em meio à diversidade de outros corpos. Elogiar gratuitamente. Valorizar características nossas e de outrem. Criticar com bom humor. E sutileza. Ajudar a procurar e a encontrar. Entender que o o que é bacana para nós pode não ser para o outro. De repente, umas admiraram outras e, mais do que diferenças, encontravam grandes semelhanças, nem que fosse apenas o gosto pelo mesmo casaquinho. A peça de roupa, a propósito, era escolhida antes de ser descoberta P, M ou G - nenhum condicionamento, nenhuma urgência em olhar uma fileira de etiquetas.

Considerei o saldo do lugar bastante positivo, para além da boa estratégia da proprietária e das três peças que levei. Primeiro porque R$ 30 é sempre um preço ótimo para uma roupa de boa qualidade. Segundo porque foi uma rara oportunidade para não ter vergonha do próprio corpo e lembrar que a nudez não precisa ser um descalabro. E terceiro e mais importante: Sinceridade é tudo na vida, por isso, não vou inventar que essa calça lindíssima ficou ruim em você só porque vestimos o mesmo número e estou na torcida para que você não a leve para casa.


Andressa Barichello, paulistana de nascença, curitibana pelo acaso.
Escreve crônicas, contos e poemas. Escreve pra tentar fazer sentido, para si e para os outros. É co-idealizadora do projeto Fotoverbe-se! e.... e.... e...

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