quinta-feira, 11 de junho de 2015

Sobre cotas para mulheres, a capa da Exame e o mimimi

Hoje foi um daqueles dias de atrasos acumulados em que a gente se sente meio médico de convênio que marca com você às 16:30 e te atende as 18:00 porque todos os atendimentos anteriores atrasaram “5 minutinhos”. Mas eu precisava comprar uma lata de leite em pó a ser doado para a iniciativa social linda de uma amiga empreendedora (Mutativa!). Então, entrei apressada nas Lojas Americanas após um atendimento, buscando o setor onde eu esperava encontrar a tal lata de leite. No caminho do caixa, como todas devem saber há inúmeras tentações “chocoláticas” e também revistas que normalmente eu costumo ignorar (a segunda com mais sucesso do que a primeira).

Foi então que bati o olho na Exame: “As mulheres precisam de cotas?” Tchan tchan tchan.... Em letras menores a chamada dizia: “Empresárias e altas executivas defendem cotas para mulheres na cúpula das empresas brasileiras. A meta é nobre, mas fica a pergunta – será que esse é o melhor caminho para atingi-la?” Ai ai ai... “será que arrisco?” dialoguei com a minha versão menos masoquista que tem conseguido com certo sucesso não ler artigos de blogueiros da Veja apenas para saciar uma curiosidade mórbida quanto à argumentação tosca e distorcida da vez ou posts de amigos nonsense que só me fazem passar raiva. “Ahhh vou comprar! Afinal de contas nesse caso trata-se de material de estudo para o meu trabalho...”

Deveria ter ouvido o meu primeiro instinto... as usual...

Já no primeiro parágrafo me deparo com a seguinte frase: “mas muitas (das executivas a favor das cotas) se sentem numa posição desconfortável por defender uma medida discriminatória como são as cotas”. Após aquele momento “oh my God” respiro fundo e continuo a leitura para me deparar com uma citação da presidente da TAM que afirma: “a imposição de cotas deve ser utilizada com muita cautela para que não se criem outras distorções como colocar pessoas menos qualificadas para o exercício de uma função”.

Este era apenas o prenúncio de uma tragédia anunciada lá na fila do caixa da americanas.

A matéria continua de forma desastrosa e tendenciosa (para não dizer de má-fé) a fazer uma construção insidiosa de argumentos machistas disfarçados mal e porcamente de neutros para concluir que “no mínimo o tema deve ser tratado com cuidado”. Para fazer isso a Exame: distorce números, lança mão de e reforça estereótipos, demonstra um conhecimento nulo sobre questões de gênero, passando por uma subseção da matéria intitulada “sem mimimi”. Não bastasse isso tudo ela simplesmente tira do contexto frases da minha “personal musa” e diva Sheryl Sandberg fazendo crer ao pobre leitor desavisado que ela coloca a culpa da desigualdade no mercado de trabalho nas mulheres em seu livro “Faça Acontecer” e isso minhas amigas e meus amigos para mim foi imperdoável!

E é por isso que após terminar (sim eu cheguei até o fim com muito nó no estomago) de ler essa matéria patética eu resolvi ligar o meu computador à meia noite e quarenta para detalhar as falácias da matéria da Exame desta semana. Não é minha pretensão apresentar todos os dados e números pois para isso o Sr. Google está aí. Trago aqui algumas fontes que podem ser consultadas só para começar a brincar, mas a ideia mesmo é desconstruir e problematizar raciocínios falaciosos e sim muito muito machistas.

De antemão peço desculpas por eventuais erros de digitação pelo adiantar da hora. Não peço desculpas porém pelo tom pois estou de verdade farta desse tipo de matéria, desse tipo de raciocínio e dessa mídia completamente misógina e desrespeitosa com todas nós. 

Falácia número 1: “As cotas são uma medida discriminatória”


Temos aqui um caso clássico de falsa simetria, ou seja: quando uma pessoa compara duas coisas muito diferentes, envolvidas numa relação de poder completamente desequilibrada, e as julga semelhantes. A falsa simetria é quando, querendo tratar tudo com "igualdade", nós fingimos que a desigualdade de poder não existe.

Cotas sempre existiram, elas apenas vinham beneficiando apenas homens! 

Em que planeta um homem vai ser discriminado por ser homem? Em que planeta ter cotas para mulheres fará com que a coletividade “homens” que domina absolutamente o espaço público será preterida e marginalizada gerando uma “distorção” no mercado de trabalho?

Esses argumentos são o equivalente aos dos apoiadores do dia do orgulho hétero e das camisetas “100% branco”.

Bem, se você acredita nesses argumentos a dica é sair correndo deste blog pois você irá se irritar muito com ele. A outra dica seria estudar um pouquinho de história e sociologia se der tempo que vai sempre muito bem e evita constrangimentos. 

Falácia número 2: “As mulheres são menos preparadas e podem levar as empresas à falência se estas forem obrigadas a terem cotas nos Conselhos de Administração”


Deixando o fatalismo de lado, os números demonstram exatamente o contrário mas ainda que se queira usar o argumento de que esse estudo não focou em mulheres “cotistas”,  os dados da Noruega, pioneira na adoção de cotas para mulheres nos Conselhos de Administração nos dizem que: “no mínimo, há consenso que as coisas continuam mais ou menos como estavam antes das cotas, como concluiu um estudo da Confederação de Empresas Norueguesas (NHO na sigla em norueguês)”.

Então pode ficar tranquilinho que as suas ações na Bolsa não irão despencar caso alguma medida desse tipo passe no Brasil!!!

Falácia número 3: “O relógio biológico”


Aqui começa o festival de pérolas!

“Muitas mulheres não conseguem conciliar a vida familiar e a carreira” diz Fernando Mantovani.

Porque, já os homens né... Não? Eles também não conseguem? Opa! Pera! Eles ao menos tentam?

Pois é... por que será que as mulheres não “conseguem” conciliar? Será porque elas dedicam 26 horas semanais às tarefas domesticas enquanto os homens apenas 10? Será por que elas ouvem o tempo inteiro da sociedade que “os filhos e a família tem que vir em primeiro lugar” e normalmente passam seu horário de expediente afundadas na culpa pelas “péssimas mães” que são e suas horas em casa preocupadas com o que está sendo decidido no Happy Hour com o chefe ao qual não puderam comparecer? Ou será talvez porque mulheres altamente motivadas são vistas por seus empregadores como tão dedicadas ao trabalho que provavelmente sejam más mães e isso resulta em aumentos salariais menores e em menos promoções? Ou, ainda, por frases justamente como as reproduzidas na matéria em que mulheres que tiveram sucesso profissional reconhecem a “sorte que tiveram por terem encontrado um parceiro compreensivo”? Sim, porque a Exame chama de “alternativa” a participação masculina nas tarefas domésticas porque né... todos sabemos de quem é a obrigação!

Mas vamos além... pode ser talvez que essas mulheres “falhem” nessa conciliação porque ninguém te diz: exija que seu marido divida as tarefas! Ninguém diz para o seu marido largar o emprego (ainda que ele ganhe bem menos do que você) e ficar em casa para apoiar a sua grande oportunidade de promoção. Ninguém te dá essa opção e quando uma mulher ou um casal faz essa opção as críticas vêm igual um míssil de tudo quanto é lado. Como é vista uma mãe que abandona a carreira pelos filhos? E o contrário? Como é vista uma mulher que opta por não ter filhos para se dedicar à carreira de seu sonho? Isso é escolha? Isso é “não conseguir”?

Falácia número 4: “O mimimi”  


Preciso confessar que quase gorfei ao ler o subtítulo “sem mimimi” no mesmo dia em que uma farmacêutica lança uma campanha bizarra tratando a cólica menstrual como frescura e "mimimi" em um contexto em que mais de 7 milhões de brasileiras sofrem com fortes cólicas menstrual, declínio na qualidade de vida, com destruições de sonhos, adiamento de planos e tarefas e não conseguem um diagnóstico em menos de 10 anos de uma doença chamada endometriose justamente por essa banalização da dor alheia... ok ok esse é assunto para outro post. Enfim, achando que o subtítulo era o pior que poderia haver nesta matéria e que dali para frente não tinha como piorar me deparo com a seguinte colocação: “Inevitavelmente, discussões que envolvem desigualdade de gênero acabam flertando com certa vitimização das mulheres, diante de uma suposta conspiração masculina. Essa ideia tem sido rechaçada por executivas que cobram das próprias mulheres uma postura mais agressiva (...)” O bla bla bla continua para concluir brilhantemente que a musa Sheryl Sandberg acredita que o mundo é o que é porque “os homens aproveitam melhor e mais rapidamente as oportunidades do que as mulheres às quais falta ambição”.


E neste momento ficou claro para mim que o que, até então, eu estava considerando uma matéria tendenciosa e desinformada era na verdade uma tentativa de má-fé de deslegitimar ações afirmativas de inclusão com o objetivo de perpetuar privilégios. Se esta criatura que escreveu a matéria tivesse LIDO o livro da Sheryl ou ao menos acompanhasse a musa nas mídias sociais, certamente saberia que essas frases foram tiradas completamente do contexto.

Ela apresenta ao longo do livro inúmeros estudos que demonstram como as construções sociais, a educação e a estrutura social contribuem para que a mulher tenha sim menos ambição mas porque foi praticamente obrigada a isso. Ela constrói todo um raciocínio da importância da igualdade na divisão de tarefas como uma das formas mais importantes de se alterar uma realidade que na maior parte das vezes praticamente expulsa os talentos femininos das empresas. Ela constrói também importantes métodos de empoderamento feminino mas certamente, uma coisa que ela não faz é culpar as mulheres pela atual situação vexatória de desigualdade de gênero no topo da pirâmide política e corporativa!!!

Falar em vitimização é um recurso comum dos que não querem perder seus privilégios, mas "suposta" conspiração masculina??? 

Seriam então delirantes os números das pesquisas de Stanford e Yale (este último citado pela própria matéria) que dão conta de que em pé de igualdade de currículos a maioria dos recrutadores seleciona homens e lhes apresenta propostas de salários bem maiores do que às mulheres? Seriam delírios da nossa TPM (pq né...) quando somos constantemente interrompidas em reuniões, temos nossas ideias roubadas e chamadas de mandonas e agressivas quando nos posicionamos? Alguém avise a Exame que a Sheryl Sandberg anda delirando também pois ao criar a campanha "Ban Bossy" é justamente para esta "suposta" conspiração que ela estava chamando a atenção. 


Falo isso com muita tranquilidade de quem teve uma carreira de destaque, incluindo um aumento salarial de mais de 500% em 4 anos e mesmo sendo mulher chegou ao corpo diretivo de uma multinacional do segmento automotivo sabidamente um ambiente altamente masculino e machista. E sim, eu consegui! Mas apenas porque trabalhei o dobro, quando não o triplo que meus colegas e mesmo assim tive que brigar, que lutar contra preconceitos e muitas vezes fui sim preterida por ser mulher, especialmente quando comecei a ser vista como "potencial futura mamãe". 

Falácia número 5: “Não funcionou lá vai funcionar aqui?”


Para finalizar a matéria em grande estilo e de forma coerente com a distorção de números apresentada até então, a Exame negrita em destaque e Caixa Alta NA NORUEGA, AS COTAS NÃO CONSEGUIRAM ALÇAR MAIS MULHERES À PRESIDÊNCIA ignorando completamente no desenvolvimento do texto que o número de mulheres presentes nos conselhos aumentou de 15% para 36% após a adoção das cotas, apesar da resistência à medida (sim! noruegueses também são machistas!), apesar dos alarmes fatalistas não terem se confirmado e da Noruega ter superado muito bem obrigada a crise financeira que abalou a Europa e o mundo recentemente!

Considerações finais sobre privilégios


Os argumentos contrários às cotas para aumentar a participação de mulheres em posições de poder (seja na politica, seja em Conselhos, seja no raio que o parta!) são muito parecidos às críticas às cotas raciais, de renda, e também, à abolição da escravidão e do voto feminino há pouco menos de 100 anos e todos sustentados na mesma base e na mesma lógica: a manutenção de privilégios!

Não acredita? Acha que estou de mimimi?

Pois peguemos esses dois últimos exemplos: a abolição da escravatura e o movimento anti-sufragista.

Aulas de história ficam por conta de vocês, mas para quem não sabe havia inclusive dentro do próprio movimento abolicionista uma parcela que defendia que “os negros deveriam conquistar a liberdade por si sós e não através de leis” ohhhhh wait... né?!

Dar uma passada pelas charges que ironizavam o voto feminino pode ser bastante instrutivo também...



“ahhhhhhh mas muitas mulheres também são contra as cotas!”

Pois muitas mulheres também eram contra o votofeminino:

As líderes anti-sufragistas norte-americanas pertenciam homogeneamente à classe alta – uma espécie de aristocracia urbana, e tinham acesso fácil ao mundo da governação por intermédio de laços familiares e de casamento, o que significa dizer que eram filhas, irmãs ou esposas de homens altamente colocados no mundo da finança, da indústria e da política. O facto de pertencerem à classe social dominante da América dos fins do século XIX é um elemento chave para se compreender a sua oposição em relação ao movimento de emancipação das mulheres. Em certo sentido, poderia dizer-se que para elas, especificamente, a emancipação não tinha grande significado, pois a sua posição era já influente e privilegiada e poderiam imaginar, com boas razões, que uma mais extensa democratização da sociedade só iria contribuir para uma diminuição dos seus privilégios de classe”.

Alguma semelhança?

A questão é que a conquista de direitos para uns necessariamente passa pela perda de privilégio de outros! É talvez a maliciosidade e a forma escorregadia com a qual essa matéria infeliz se disfarça de “preocupada” e a favor da igualdade que me incomoda. Mais honroso seria se fizessem logo uma charge no estilo das aqui linkadas.

Há quem diga que a conquista de direitos é um processo inerente ao avanço das democracias, e que, portanto, chegaríamos a uma legislação igualitária independente de lutas e de políticas públicas. Mais uma vez a história parece discordar diametralmente. Fôssemos depender do avanço democrático (e não de lutas) ainda teríamos a legítima defesa da honra (do homem), a mulher como incapaz civilmente, o estupro marital seria legal já que "meros caprichos - mimimi" não justificavam tolher do homem seu direito à propriedade do corpo de sua mulher. 


Me encaminhando à cama já às 02:25 prefiro ficar com a visão da Sheryl não distorcida:

“Um mundo de fato igualitário seria aquele em que as mulheres comandassem metade dos países e das empresas e os homens dirigissem metade dos lares.” (Sheryl Sandberg) 

E concluo com a frase de um dos melhores políticos e filósofos que a dramaturgia já viu: Tyron Lannister: 

"É fácil confundir "o que é "com "o que deveria ser", especialmente quando 'o que é' tem funcionado em seu favor."




Outas fontes: 

3 comentários:

  1. tristeza profunda dessa matéria existir. obrigada por escrever esse post, já vou guardar na manga pra quando imbecis da minha TL postarem isso. =/

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  2. Muito bom o texto! Mas acho que você demorou muito tempo pra perceber que a revista Exame não merece ser comprada, não é?... hehehe...

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  3. Excelente! Um dos textos mais coerentes que li recentemente, bem embasado e muito bem escrito! Questionar o mal jornalismo é uma das maiores contribuições que autores independentes podem trazer para a sociedade, usando a internet. Parabéns pelo texto!

    A questão me lembra muito da frase de boaventura de souza santos: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

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